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Em tempos de pandemia festejar a propriedade intelectual

Em tempos de pandemia festejar a propriedade intelectual
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Em circunstâncias normais, as efemérides que se vêm sucedendo desde março seriam largamente ignoradas pelo público, com a honrosa excepção de uma ou outra peça televisiva no último segmento do noticiário ou de um artigo ou post numa rede social pelo apaixonado do que quer seja que se estivesse a celebrar. 

Em tempos de pandemia festejar a propriedade intelectual

A realidade, porém, tem sempre pérfidas formas de nos apanhar desprevenidos, e o que ontem provocaria um bafejo de aborrecimento perante (mais) uma celebração pateta (ao estilo, hoje é o dia dos Antónios ou das Marianas), pode hoje ser usado como escape intelectual e emocional dessa mesma realidade. Pelo menos – e já é muito –, sempre se ocupa algum espaço com outra coisa que não o vírus. 

Vem tudo isto a propósito de, a 26 de abril de cada ano (desde 2000), se comemorar o Dia Mundial da Propriedade Intelectual. “Mas para quê celebrar a propriedade, ainda para mais a do espírito?”, perguntarão alguns. A resposta a esta pergunta não é simples, principalmente nesta Era Digital, em que a cópia, o furto e o plágio, seja de obras artísticas, ideias, processos, marcas, segredos ou invenções é o “pão nosso de cada dia”. De facto, os extraordinários avanços tecnológicos do último século, aliados à ubiquidade da internet, se, por um lado, exponenciaram o engenho e a criatividade e, por conseguinte, fomentaram a propriedade intelectual (PI), por outro lado também facilitaram que muitos, bem ou mal- intencionados, se aproveitassem das ideias e criações de alguns. 

Ora, perceber a relevância de se garantir um núcleo de direitos a quem cria uma obra artística, uma invenção, um processo, um modelo ou um sinal distintivo não é difícil. Imagine-se um escritor que decidiu fazer vida dessa actividade. Esteve um ano focado a escrever um romance, que julga ser a sua obra-prima. Nesse ano esvai as últimas poupanças na publicação e reprodução do romance e espera conseguir viver no ano seguinte da remuneração que receber das vendas. Por azar, vive num Estado cujo ordenamento jurídico não tutela, de forma alguma, os direitos de autor e onde a propriedade privada apenas pode ter por objecto bens corpóreos. No mesmo dia do lançamento do livro, um “amigo” compra-lhe o romance e, advogando o livre acesso aos bens culturais, digitaliza o livro e coloca-o online. O nosso escritor ver-se-á, então, numa encruzilhada: a propriedade dos livros que ainda não vendeu é sua, mas o conteúdo daquelas páginas já não é, livre e gratuitamente acessível a todos, o que torna a compra do seu romance físico redundante… assim terminado a sua breve carreira de autor. 

Ainda neste exercício empático, pensemos no cientista e empreendedor que, após anos de investigação e desenvolvimento, inventa um medicamento revolucionário para o tratamento da COVID-19, sendo certo que nessa actividade de I&D investiu uma soma considerável. Esse empreendedor, igualmente azarado, vive no mesmo país do escritor e quando inicia a comercialização do medicamento descobre que não tem forma de evitar que outros “empreendedores” copiem a sua fórmula e até – imagine-se! – a designação que criou para a venda do tratamento. Perante a concorrência selvagem em seu redor, o cientista, num acto irreflexo, coloca as mãos à cabeça para constatar que, se soubesse o que iria acontecer, não teria mexido uma palha. Na verdade, nada fazer ter-lhe-ia saído bem mais barato. 

Estes exemplos, apesar de simples, encapsulam bem a essencialidade da propriedade intelectual: sem ela, não haveria qualquer incentivo à inovação, à investigação e à criatividade, e quem perderia com isso, mais do que os artistas e os criadores, seriamos todos nós, que ficaríamos privados da cultura, da arte, da televisão, do software e hardware, de novos produtos e processos. Não deixa de haver ironia no facto de os exigentes desafios que a PI hoje enfrenta serem consequência das possibilidades criadas pelas invenções e produtos que ela própria protege e incentiva. 

Porque nenhum de nós deseja que os artistas deixem de produzir arte, ou que a Apple deixe de investir no desenvolvimento do iPhone ou que os cientistas deixem de procurar a vacina para o coronavírus, a propriedade intelectual tem de ser celebrada e acarinhada, mais ainda nestes tempos conturbados.

Post de Tiago Rocha
Jurista, Sociedade de Advogados Cerejeira Namora, Marinho Falcão
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